Religião


Dito isso, pode se entender a escassa fortuna teórica dos santos. Elementos medianos ou mediadores num sentido lógico e às vezes jurídico, eles são muito importantes para o nativo, mas nem sempre para o antropólogo: este prefere em geral desencavar estruturas ou interpretar - em qualquer caso, ir fundo. Os santos podem parecer superficiais ou acessórios, e ficar, assim, amontoados na gaveta dos folcloristas, ou relegados a um contexto teórico que parece feito à sua medida, o da religiosidade popular. Lá, eles servem para encarnar a astúcia dos oprimidos, capaz de flexibilizar os paradigmas de uma religião oficial, ou a astúcia dos opressores, como artifícios que ajudarão a popularizar uma doutrina oficial efetiva. Não é estranho, afinal, que a teoria feita à medida de um fenômeno subalterno seja em si mesma uma teoria subalterna, como se não pudesse aspirar a dizer nada substantivo sobre o religioso, o social ou o cultural, senão introduzindo matizes em torno das façanhas do sujeito manipulador.
Um resumo desse tipo, num artigo que toma dessa literatura uma parte fundamental dos seus temas, seria porém descortês se não reconhecesse que a literatura sobre a religião popular, extensa e rica, desborda em muito esse cercado teórico que serve apenas para identificá-la. Entre muitos autores, poderia citar a produção acadêmica de: (a) alguns brasileiros que elaboram explicitamente o conceito de religião popular (Brandão 1980; Fernandes 1982; Zaluar 1983; Sanchis 1992); (b) dos dados espanhóis da extensa coletânea organizada por Alvarez Santaló & alii (1989); (c) e dos que, nem sempre se vinculando a esse rótulo, têm adensado o campo de estudos dos santos: tal como os trabalhos monográficos organizados por Macklin & Margolies (1988), ou pela revista Terrain no seu número 24, com o tema "La fabrication des saints", cujas contribuições serão citadas mais adiante além da tese de doutorado e artigos relacionados de Freitas (2006; 2007), Martin (2007), entre outros3.
Este artigo é uma reflexão sobre o lugar que a tais empenhos poderia caber no panorama geral dos estudos sobre a religião. Consequentemente, isso significa que a riqueza das relações entre o santo e o seu devoto, ou das outras associações que dela provem, serão desatendidas em prol de um objetivo mais restrito, que explicitarei logo a seguir. De modo mais direto, este artigo é uma reconsideração de trabalhos anteriores do seu autor, especialmente de quatro livros dedicados ao tema: Las formas locales de la vida religiosa (Calavia Sáez 2001);Fantasmas Falados (Calavia Sáez 1996); Os Caminhos de Santiago (Calavia Sáez 2007) e Deus e o Diabo em terras católicas (Calavia Sáez 1999), doravante referidas como FL, FF, CS e DD. Tento nesta ocasião - beirando o infame gênero da auto-resenha - explorar as virtualidades teóricas de um conjunto de trabalhos descritivos, pouco explícitos quanto às suas conseqüências para os estudos sobre religião e simbolismo, ou, em outras palavras, reticentes quanto a interpretações gerais. Pretendo mostrar que há uma correlação direta entre a textura narrativa e descritiva desses trabalhos - e de muitos que os inspiraram
- e sua marginalidade dentro de um panorama teórico inserido numa "sociologia do social" (Latour 2007), onde o local é transcendido por fins de abstração. E mostrar igualmente que essa marginalidade é consistente com a que se atribui aos santos nas religiões que fazem primar doutrinas universalistas.
Os quatro trabalhos abordam o estudo dos santos de modos muito diferentes. FL e FF, embora aparentemente muito distantes pela paisagem que descrevem, são os mais próximos entre si. Em ambos os casos, trata-se de uma pesquisa original sobre um conjunto de três santuários, na Espanha, no primeiro caso, e no Brasil, no segundo. O mais recente dos espanhóis surgiu provavelmente na Baixa Idade Média; o mais antigo dos brasileiros talvez tenha de cinquenta a setenta anos, no máximo. Os primeiros ficaram englobados há muito tempo em dois grandes mosteiros e uma catedral, e já foram objeto de talvez uma centena de volumes historiográficos. Os segundos são túmulos de cadáveres modestos, aos que, na época em que a pesquisa foi realizada, apenas as matérias jornalísticas do Dia de Finados e algumas dissertações de mestrado faziam referência. Mas são estes últimos os que conseguem mostrar a unidade do conjunto: ou seja, a continuidade entre devoções mínimas e marginais e o culto aos santos estabelecidos, as redes de relatos e devotos que nos santuários seculares têm se transformado há muito tempo em corpos de mitos e rituais aparentemente sólidos.
FF trata de um trabalho formativo que a longa história narrada em FL já tornou invisível, sugere que o que está por trás, ou no passado, de um culto aos santos dotado de literatura, arte sacra e opulentos rituais públicos é esse mesmo labor simbólico que pode se encontrar nos cultos improvisados a mortos praticamente anônimos; ou, em outras palavras, que um poder simbólico oficialmente consagrado tem suas origens na margem. Os santos sãoachados e domesticados - na medida do possível e em um prazo muito longo - pela Igreja, mas não instituídos por ela.
É verdade que, a partir do século X, a Igreja começou a elaborar um processo burocrático de canonização, que já na época da Contra-Reforma tinha dado lugar a um novo modelo de santidade, justaposto ao anterior sem, porém, substituí-lo totalmente: acabou-se assim rendendo culto a personagens oriundos quase sem exceção das fileiras da Igreja (membros do clero ou de ordens religiosas), que assim reduplicou seu próprio poder de mediação entre o fiel e a divindade: ao clero empírico e semovente que dirige catedrais, paróquias e conventos, acrescentou-se um clero sobrenatural, situado no Céu ou nos altares. Já na nova (não mais tão nova) situação, que tendemos a identificar sem mais com o culto aos santos, a Igreja está se valendo de um modelo "popular" preexistente, no qual as figuras da santidade emergiam de uma tradição informal, sem solução de continuidade com o universo religioso anterior ao cristianismo. Embora explicitamente queira-se fazer derivar a santidade do modelo de Cristo, parece evidente que é essa uma genealogia adventícia: basta percorrer as histórias enumeradas em FL e FF para ver que os santos, antigos ou recentes, surgem muito longe do seu pretenso modelo.
Já CS é um ensaio de escopo muito maior, que faz amplo uso de fontes secundárias, e aborda temas ou casos mais conhecidos: o culto (a rigor, os cultos) de um santo importante, a literatura cristã sobre os mártires, e o tema outrora muito popular (mas há tempo desatendido) das relações entre o passado pagão e a sua reformulação cristã, mostrando que o interesse dessa relação não se limita à corriqueira obsessão pelas origens, mas se estrema ao desvendar uma organização do universo simbólico que continua a contrastar com aquela da teologia erudita. O paganismo não é uma era periclitada, mas um outro modo, perfeitamente em vigor, de relação com e entre os símbolos. A simples enumeração das variantes de Santiago, um personagem central do mundo religioso ibérico, basta para esclarecer a pluralidade que se deixa de lado quando o olhar enfoca a celebre unidade da ortodoxia católica. Quanto a DD, sua relação com as outras três obras é de complemento e contraste: embora trate dos mesmos lugares, das mesmas narrativas e os mesmos rituais, o seu foco está nas polaridades e não nas mediações: nos deuses e nos seus inimigos, não nos santos. É, também, por isso mesmo, a única em que o foco está situado não sobre um sistema de mitos e rituais, mas sobre a religião, ou mais exatamente sobre os limites que lhe fornecem a divindade e de seus contrários.
A tese mais visível desse conjunto bibliográfico é uma crítica do paradigma da religião popular, esse morto-vivo que, uma e outra vez descartado nos estudos do ramo, não deixa por isso de fazer parte essencial do seu vocabulário ou de seus pressupostos. A única alternativa real a esse paradigma não é mostrar a fluidez ou o hibridismo do popular, mas postular que a religião popular é a religião normal, não uma versão empobrecida de algo que se manifesta alhures com maior eficiência - algo que boa parte dos estudos sobre religião subalterna manifesta à revelia do paradigma em que se desenvolvem.
Com efeito, onde está aqui o popular? Como mostra à saciedade CS, Santiago foi, por muito tempo, o símbolo central do estado e da aristocracia da Espanha. Revendo os dados de FL, comprovaremos que, na Idade Média, San Millán é um personagem essencial na criação dos estados ibéricos e no estabelecimento da cultura letrada castelhana; Santo Domingo de La Calzada aglutina elites de comerciantes, e contribui poderosamente à constituição de toda uma próspera cidade; a promoção do culto das diversas imagens da Virgem Maria ocupa diretamente à monarquia e ao papado (que, longe de ser voltairianos avant la page, esperavam milagres dos cultos que fabricavam, não menos que os seus vassalos). E não obstante, todo esse universo é embutido pelas análises no que costumamos chamar "religiosidade popular".
O aristocrático de ontem, sabemos, costuma se desvalorizar até chegar no popular de agora. Mas aonde chega esse ontem? Em que pese a certas avaliações excessivas da secularização, podemos notar que a produção dos rituais "populares" está em pleno vigor, como mostra FL, e continua interessando a políticos de relevância regional ou nacional, que comparecem às festas, as subsidiam ou contribuem a reformulá-las ou a ampliá-las, nem que seja com o álibi da promoção turística ou da identidade regional. Que essa devoção atenda a interesses não estritamente religiosos não é novidade, nem exclui outras devoções mais (digamos) sinceras: muito antes de que alguém falasse de desencantamento do mundo - em plena Idade Média, por exemplo - podemos encontrar indícios de um cuidadoso planejamento que vincula os santuários (e os fatos que os fundamentam: posse de relíquias, milagres, aparições) ao desenvolvimento econômico de uma região ou às disputas territoriais ou dinásticas.
Sabemos com Peter Brown (1980) que o que costumamos chamar de "popular" no contexto cristão não deve ser visto em função de um contraste entre "povo" e "elite", mas de um conflito entre o clero letrado e as elites leigas, esse patriciado que quer prestigiar sua genealogia com o culto dos santos, e que tem, de resto, os meios para sufragá-lo: construir santuários, encomendar imagens, publicar hagiografias, sufragar festas suntuosas. O que se opõe à religião dos santos é a elaboração letrada (bíblica e doutrinária) de um setor dessa elite, o clero. Mesmo assim, qual clero? Não decerto o numeroso clero que atua no serviço dos santuários, que se digladia nas polêmicas sobre o lugar de nascimento de tal ou qual santo, que escreve hagiografias e dá instruções a pintores e escultores.
Mesmo longe desse universo barroco que aparece constantemente em FL, DD e CS, em que essas atividades alcançam seu auge, o que entendemos por religião subalterna ocupa a maior parte das energias religiosas dos camponeses, os comerciantes, a nobreza alta e baixa, a casa real, e a maior parte do clero. Certo, sobrará sempre algo assim como um assento reservado, um lugar hierarquicamente superior, mas singularmente ermo, para a chamada religião oficial. Se procurássemos um espaço onde essa religião "não popular" se manifesta sem adjetivos, encontraríamos um reduto limitado, aliás, incomodamente compartilhado entre os formuladores da ortodoxia e os formuladores da heterodoxia.